Folha.com | Cotidiano: Funai perde 23% do orçamento e opera só com 36% dos servidores

Responsável pela demarcação do que ainda resta de terras indígenas no país, a Funai (Fundação Nacional do Índio) vem sofrendo seguidos cortes orçamentários desde 2011, além de atuar com somente 36% da sua capacidade total de servidores.

De acordo com dados da própria Funai, aproximadamente 30% das terras indígenas ainda não foram demarcadas no país, o que representa 204 terras pendentes e 700 já homologadas.

Em 2016, por exemplo, o orçamento geral autorizado, de R$ 653 milhões, teve redução de 23% em relação a 2015, o que equivale a R$ 150 milhões a menos em caixa –o maior corte anual desde 2006. “A gente que é do movimento indígena sabe que o governo não vem dando condições para que a Funai faça o seu trabalho direito”, diz Suluene Guajajara, do povo guajajara, da terra indígena Arariboia, no Maranhão.

Além dela, ex-presidentes e servidores relatam que a situação tem impactado diretamente nas ações presenciais de fiscalização dos territórios indígenas, que hoje somam mais de 110 milhões de hectares, 13% do território nacional.

Segundo o último relatório de gestão do órgão, foram 227 ações de fiscalização em 2011 e 92 em 2014, queda de 60%. O documento registra ainda que o diminuto orçamento “limita o desempenho” das ações de monitoramento.

“Quando você pega o mapa de terras indígenas e compara com o número de funcionários, é inacreditável”, afirma Mércio Gomes, ex-presidente da Funai (2003-2007, durante a gestão Lula). “É um mundo imenso com um orçamento pífio”, diz.

GRUPO DOS GUARDIÕES

Cansados de esperar pelo governo, os guajajaras resolveram reagir. Em 2008, criaram um grupo de proteção do território, oficializado em 2013 como o grupo dos Guardiões. “Formamos uma comissão de líderes e caciques para defendermos o nosso território”, conta Suluene.

A missão é percorrer todos os 413 mil hectares da terra indígena Arariboia em busca de invasores, sobretudo madeireiros e garimpeiros.

Ao protegerem a própria terra, esses povos buscam garantir seu direito de usufruto exclusivo, como determina a Constituição de 1988. Quando encontram invasores, os guajajaras comunicam à Funai e a outras autoridades. Além deles, outras etnias fazem a guarda do território, caso dos boraris, arapiuns e mundurukus, todos no Pará.

O risco, porém, os acompanha. No primeiro semestre deste ano, quatro guajajaras foram assassinados no período de um mês, dois deles a pauladas. Assis Guajajara, um dos mortos, era guardião.

“Eles sofrem muita ameaça. Não podem mais fazer compras na cidade porque as pessoas que lucram com a exploração das nossas terras ficam falando que vão queimar, que vão cortar o corpo dos guardiões. Até colocam preço: quem matar um leva R$ 15 mil”, diz Suluene.

“A Funai vai na terra uma vez, coíbe alguns madeireiros, mas ao sair eles voltam.”

Último presidente do órgão, João Pedro Gonçalves, 63, exonerado no início do mês, declara que a falta de orçamento se refletiu na “diminuição das ações, e de todas elas”.

Ele afirma que a situação se deve à crise econômica. “Tem dois anos de crise concreta na economia brasileira, e sofremos bastante com esses cortes do orçamento.”

VIOLÊNCIA RECORDE

Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação indicam que 38 indígenas são parte do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, mantido pelo governo federal. Outros 43 passam por uma triagem e 15 estão em análise, totalizando 96 indígenas. Entre 2009 e 2016, 133 indígenas foram acolhidos pelo programa.

Desde 2003, a situação de insegurança e violência contra indígenas é registrada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 2014, ano do último levantamento, 138 indígenas foram assassinados em todo o país, um recorde. A média anual é de 68 assassinatos desse tipo.

MINERAÇÃO

A mineração em terras indígenas está prevista no artigo 231 da Constituição, mas só pode ser exercida se regulamentada por legislação específica, ainda inexistente.

Atualmente, 25% desses territórios registram processos minerários de pesquisa e lavra no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). A proporção de terras indígenas com interesses minerários equivale, hoje, ao tamanho da Itália.

Levantamento da reportagem mostra que a Amazônia Legal, por exemplo, região que engloba nove Estados, tem 34% de suas áreas indígenas com processos de mineração, que vão do desejo de explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho.

Nessa região amazônica, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos minerários. Líder desse ranking nacional, o Pará concentra 50% desses interesses.

Atualmente, tramita em regime de prioridade na Câmara projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR) voltado para essa regulamentação. À espera de aprovação numa comissão especial, criada em 2015, o projeto pode ir à sanção presidencial na sequência, sem passar pelo plenário.

Se virar lei, a mineração passaria a ser legal nas terras indígenas mediante consulta e repasse de um percentual dos lucros aos índios.

No entanto, o movimento indígena está preocupado. “A gente acha que o projeto do Jucá vem mais para atender os interesses dos empresários que querem fazer mineração nas terras do que os dos povos indígenas”, avalia Sônia Guajajara, coordenadora geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“Não estamos tirando nenhum direito dos índios, e sim ampliando. Os que quiserem autorizar a exploração em suas terras terão suas terras exploradas”, afirmou o deputado federal Indio da Costa (PSD-RJ), presidente da comissão especial.

O movimento indigenista defende que a regulamentação da mineração seja apreciada junto com o Estatuto das Sociedades Indígenas, já aprovado em comissão especial em 1994 e parado desde então na Câmara.

OUTRO LADO

Procurado, o Ministério da Justiça, ao qual a Funai (Fundação Nacional do Índio) está subordinada, informou que está avaliando a situação do órgão, mas não esclareceu quais medidas irá tomar em relação ao quadro informado pela reportagem.

A Casa Civil da Presidência da República não retornou o contato com esclarecimentos sobre o futuro do órgão indigenista. A Funai, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que sua política é de valorização dos povos indígenas, mesmo diante das deficiências relatadas.

A fundação ainda não teve um presidente nomeado desde que o petista João Pedro Gonçalves deixou o cargo, no início do mês, após a mudança no Palácio do Planalto.

Segundo Pedro Gonçalves, o presidente interino, Michel Temer (PMDB), representa “atraso na pauta indígena”.

“Esse governo não tem DNA para ter uma relação sincera e reta com os movimentos populares”, afirmou.

Pedro Gonçalves, que assumiu a autarquia em junho de 2015, delimitou 12 terras indígenas –nove nos últimos dois meses e três no dia do afastamento da presidente, em 12 de maio.

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Este texto publicado pela Folha é uma versão editada com exclusividade pela Agência Pública para o jornal de sua série de reportagens sobre o especial Amazônia em Disputa. O material completo vai ao ar nesta quinta-feira (16), às 12h.

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