Criticada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), entidades e parlamentares contrários ao projeto, a “manobra regimental” usada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para aprovar a proposta de emenda constitucional (PEC) que reduz a maioridade penal de 18 anos para 16 anos para crimes hediondos, homicídio doloso ou lesão corporal seguida de morte provoca polêmica há anos no Congresso Nacional, onde tem se mostrado um instrumento efetivo para aprovar projetos.
A emenda aglutinativa – em que várias emendas apresentadas a um projeto são misturadas para formar um texto de consenso data da época do Império, foi utilizado à exaustão pelo ex-presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB), para aprovar a Constituição Federal de 1988 e voltou a ser usada a partir da reforma da Previdência Social no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Em 1996, quando o tucano tentava aprovar a reforma da previdência com fim do adicional para funcionários públicos, extinção da aposentadoria especial para carreiras como a de juízes e a exclusão dos trabalhadores sem carteira assinada, o relatório do deputado Euler Ribeiro (PFL-AM) foi derrotado em plenário – teve 294 votos favoráveis, 14 a menos do que o necessário para aprovar a emenda à Constituição.
O presidente da Câmara na época, Luís Eduardo Magalhães (PFLBA), nomeou o deputado Michel Temer (PMDB) – hoje vice-presidente da República e um aliado que vive em atritos com Cunha relator de uma emenda aglutinativa com parte do texto derrotado e artigos retirados de outras emendas. O governo pressionou aliados que votaram contra a PEC na primeira votação, liberou o pagamento de emendas e renegociou a dívida da cidade de São Paulo para angariar o apoio do PPB do ex-prefeito Paulo Maluf. Resultado: 351 deputados votaram a favor.
Parlamentares contrários recorreram ao STF, que indeferiu o pedido por considerar que o debate sobre a emenda aglutinativa é uma questão interna do Congresso, que não afeta à Constituição Federal, e que, como ainda não havia terminado a análise da PEC – rejeitado o relatório de Ribeiro, seria votado o texto principal-, não se tratava de votar duas vezes no mesmo ano a mesma matéria – algo que a Constituição proíbe. A decisão foi tomada por dois votos a um – Marco Aurélio, que agora protesta, foi o voto vencido.
O deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), voto vencido contra a emenda aglutinativa na época, diz que o instrumento é poderoso nas mãos do governo. “Pegam o mapa de votação e pressionam os que votaram contra”, afirma. A manobra, diz, impulsionou a carreira política de Temer, eleito presidente da Câmara pela primeira vez no ano seguinte.
Desta vez contra o governo, que tentava evitar a redução da maioridade penal apesar de 75% dos partidos de sua base se manifestarem a favor do projeto, o instrumento da emenda aglutinativa foi usado para reverter a derrota do relatório do deputado Laerte Bessa (PR-DF), que acabava com a inimputabilidade para jovens entre 16 e 18 anos que cometessem crimes hediondos, tráfico de drogas, homicídio doloso (quando há intenção de matar), lesão corporal grave ou seguida de morte e roubo com aumento de pena e teve 303 dos 308 votos necessários.
“Quando as galerias comemoraram e os deputados começaram a gritar, fiquei desesperado porque vi a história se repetindo. Não poderia ter deixado encerrar a sessão para se rearticularem”, diz o deputado Miro Teixeira (Pros-RJ).
Como o texto inicial da PEC, que ainda seria votado, era mais rígido e tinha ainda menos apoio, o líder do PSD, Rogério Rosso (DF), sugeriu emenda que retirava o tráfico de drogas e lesão corporal grave para manter apenas os crimes contra a vida. Novamente, de posse do mapa de votações, Cunha e seus aliados articularam para tentar mudar o voto dos deputados contrários e convocaram os que estavam em viagem à Brasília, enquanto o governo pressionou integrantes da base que votaram à favor da PEC a faltarem na votação.
Embora 17 deputados que registraram presença na Câmara não tenham aparecido para votar, 24 deputados mudaram de posição e passaram a apoiar a PEC, aprovada por 323 votos a 155. Apenas um do PMDB virou o voto contra o projeto – Marcelo Castro (PI), que é a favor de tornar inimputáveis apenas os menores de 12 anos, mas que se absteve em protesto contra o “vale tudo”. “Do jeito que está, nenhuma votação vai acabar até que chegue ao resultado que o Eduardo Cunha quer”, diz.
O resultou gerou protestos em plenário e na Justiça. Deputados de sete partidos – PT, PMDB, PCdoB, PPS, PDT, PSOL, PSB – vão entrar na próxima semana com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar anular a aprovação da emenda. Outra ação deve ser apresentada pela OAB com o mesmo argumento: a votação foi inconstitucional, pois a proposta rejeitada não pode ser apreciada novamente no mesmo ano.
Os deputados questionam também a forma de comando de Cunha e acusam o presidente da Casa de ter feito a mesma manobra ao votar a constitucionalidade das doações de empresas a campanhas eleitorais – uma das propostas aprovadas no primeiro turno da reforma política. “O objetivo é anular a votação da maioridade e colocar um limite a esse tipo de conduta”, disse o deputado Alessandro Molon (PT-RJ).
Para o pemedebista, as críticas do PT e aliados são “choro de quem não tem voto”. “É o choro daqueles que não estão alinhados com a agenda da sociedade. Eles não discutem que não têm a maioria, que 323 deputados votaram a favor da PEC”, disse Cunha.
Ainda ontem, 24 secretários de Justiça dos Estados assinaram um manifesto contra a redução da maioridade penal. Para o grupo, é preciso que seja feito um estudo que mostre os impactos nos sistemas prisionais e o quanto essa mudança vai representar. (RDC, TR, Letícia Casado e Maíra Magro)