HÁ TEMPO O PRESIDENTE DA CÂMARA TRANSFORMA TRAMÓIAS DA SUA LAVRA EM HISTORIAS FANTÁSTICAS, MAS AGORA AS PROVAS CONTRA ELE O CONDENAM SEM APELAÇÃO
por ANDRÉ BARROCAL
Eduardo Cunha é um evangélico ardente, ou ao menos se diz. Seria a incansável leitura da Bíblia, repleta de histórias de mares que se abrem e de mulheres nascidas da costela alheia, a explicação para o pendor literário do deputado? Enroscado pela descoberta de dinheiro escondido na Suíça, o presidente da Câmara mais uma vez bota na praça uma defesa com ares de ficção. Pelas reações provocadas, deve estar arrependido feito Madalena. Não convenceu ninguém, afastou aliados e ainda viu a esposa jogada aos leões. Por ele mesmo. A ameaça de perder o mandato por quebra de decoro aumentou, em vez de diminuir. Suas histórias serviram no máximo para mostrar ao público por que está em curso um cerco global à sonegação, à evasão de divisas e à lavagem de dinheiro.
As fábulas de Cunha invadiram a realidade no sábado 7, graças a três entrevistas que ele dera na véspera. Nelas, o peemedebista tentou explicar como juntou os milhões no exterior recentemente descobertos. Nos anos 80, disse, ganhou dinheiro com uma trading vendedora de carne enlatada ao Congo. O capital teria se multiplicado na década de 90, graças a aplicações em bolsas orientais, como China e índia. O depósito de 1,3 milhão de francos suíços em uma conta dele por obra de um lobista processado por desvios na Petrobras nada teria a ver com corrupção na estatal. Seria a liquidação de um empréstimo feito no passado a um deputado hoje defunto. Sustentou também não ter mentido sobre a posse de contas na Suíça, pois o controle de algumas seria de escritórios na Escócia e em Cingapura com os quais teria firmado contratos de truste.
Na Câmara, pouca gente levou as explicações a sério e há quem entenda que ele se afundou mais. “As explicações são dignas de inspirar, se fosse vivo, Gabriel Garcia Márquez, para um conto do realismo fantástico de nuestra América”, tascou da tribuna o líder do PSOL, Chico Alencar, do Rio de Janeiro.
Cunha deu vários motivos para esse reconhecimento de seu dom literário. A trading com a qual teria começado a gloriosa carreira de negociante no exterior não tem nome, endereço, guias de exportação. Até agora, o deputado só mostrou a parlamentares seu passaporte com vistos de entrada no Congo. A história do empréstimo honrado por ação do filho de um morto-devedor é desmentida pelo vivo em questão. Em depoimento em 20 de outubro ao Ministério Público e vazado à mídia, Felipe Diniz, filho do ex-deputado Fernando Diniz (PMDB-MG), afirma não saber de empréstimos de Cunha ao pai nem ter orientado o lobista João Augusto Henriques, processado na Operação Lava Jato, a pagar ninguém.
A fantasia sempre parece pronta a socorrer Cunha. Em 2013, ele virou réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por uso de documentos falsos. O material serviu-lhe em 2002, quando ele se defendia, no Tribunal de Contas do Rio, da acusação de fraudes na presidência da estatal de habitação, a Cehab. Os documentos eram uma farsa comprovada, conforme atestado pelo Instituto de Criminalística Carlos Eboli em 2008. O falsificador, Elio Fischberg, ex-subprocurador de Justiça do Rio, foi condenado pela pirataria. Já o deputado teve sorte. Apesar de os papéis só existirem para limpar a barra de Cunha, o relator do processo, Gilmar Mendes, não viu prova de que ele soubesse da fajutice.
Outra história divertida de Cunha ocorreu durante a disputa pela presidência da Câmara. Em certo dia de janeiro, ele chamou a imprensa para dizer que tinha sido procurado no Rio por um policial, de quem ouviu a história de uma armação na Polícia Federal para prejudicá-lo. O policial, sem nome, teria dado a Cunha uma gravação, a indicar uma conversa entre quem seriam um assessor do deputado e um policial achacador. O peemedebista fez um escarcéu, e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pediu à PF apurações sobre o enredo. O inquérito policial terminou sem achar qualquer sinal de armação. Já o áudio é grosseiramente forjado, segundo o presidente da Associação Nacional dos Peritos Federais, André Morrison. Foi divulgado por Cunha e servia para ajudá-lo. Obra de quem?
Triunfante na eleição na Câmara, Cunha foi jantar certa noite de abril com peemedebistas na casa do mineiro Newton Cardoso Jr. e debochou dos petistas: “O PT não ganha uma votação, só quando a gente fica com pena na última hora”. O Globo noticiou a declaração, e Cunha correu para desmenti-la, no Twitter: “Não pronunciei o comentário a mim atribuído no jantar da bancada”. Não era o que mostrava, porém, o gravador de um dos comensais. O Globo tinha a gravação, divulgou-a na internet e sustentou o que publicara antes. O rei Eduardo ficou nu.
De volta ao caso das contas secretas. Por causa do misterioso depósito de 1,3 milhão de francos, ganharam notoriedade os milhões de Cunha no exterior. No início do ano, um banco suíço, o Julius Baer, informou às autoridades ter detectado contas a serviço da lavagem de dinheiro. Entre elas, aquela que recebeu 1,3 milhão de francos. O Ministério Público da Suíça abriu inquérito contra o brasileiro e da investigação, assumida em setembro pelo Brasil, brotaram quatro contas associadas ao peemedebista. Duas abertas em nome de empresas e controladas por Cunha via truste, a Orion e a Triumph. Uma, a Kopek, em nome da esposa de Cunha, a miss América (futebol clube) e ex-jornalista global Claudia Cruz. E outra em nome de uma offshore de Cingapura, a Netherton, da qual Cunha é sócio oculto.
O depósito de 1,3 milhão de francos foi feito em 2011. Segundo a papelada suíça, o dinheiro saiu de uma conta também na Suíça mantida no banco pela empresa Acona International Investments. Uma das três pessoas autorizadas a movimentar a conta era o lobista João Henriques. Via Acona, ele já selara no passado um acordo com o empresário Idalécio de Oliveira pelo qual teria “honorários” de 10 milhões de dólares, caso uma companhia de Oliveira, a CBH, vendesse à Petrobras metade de um campo petrolífero na África. A venda saiu em 2011. A CBH mandou os 10 milhões prometidos à conta da Acona e esta repassou 1,3 milhão de francos suíços à conta Orion, do truste de Cunha.
Há cheiro de propina no ar, pois o principal responsável pela compra por parte da Petrobras foi o diretor da área internacional da companhia à época, Jorge Zelada, preso e processado pela Lava Jato. Ele estava no cargo desde 2008, graças ao apoio político de Cunha e do finado Fernando Diniz. Eis a razão também para Cunha falar em “empréstimo” de Diniz e para tentar justificar seus milhões secretos como fruto do trabalho como caixeiro-viajante e investidor internacional.
CUNHA CONSEGUE COLOCAR O BRASIL DIANTE DE UM ENIGMA: QUE SIGNIFICA TRUSTE?
As explicações sobre a propriedade das contas são um capítulo à parte na narrativa de Cunha. O deputado invocou o truste, figura jurídica inexistente no Brasil, para justificar não ter mentido a uma CPI, conforme uma das acusações a que responde no Conselho de Ética da Câmara. Do ponto de vista formal, talvez não tenha mentido. Truste é uma palavra de origem inglesa a indicar que alguém transfere bens a outrem para que ambos os compartilhem. É usada por sonegadores e lavadores de dinheiro, mas pode ser virtuosa, caso, por exemplo, um pai assine contrato de truste com alguém de confiança para este cuidar do futuro do filho daquele se o contratante morrer antes. Sem lei de truste no Brasil, fica a dúvida jurídica sobre quem é o titular das duas contas a beneficiar Cunha, e se ele tinha a obrigação de declará-las às autoridades brasileiras.
Um relatório do perito criminal Gilberto Mendes, da Polícia Federal, enviado ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, é assertivo. Com base em documentos do Julius Baer, vaticina que as contas Orion, Triumph, Kopek e Netherton “pertencem efetivamente a Eduardo Cunha e sua esposa, Claudia Cruz”. Esta, aliás, está em maus bocados até pelo que o marido disse. Segundo Cunha, como a conta Kopek pagou despesas pessoais da esposa, talvez tenha havido sonegação.
Embaraçado pelas investigações e por suas próprias palavras, Cunha se vê solitário na Câmara. Poucos têm coragem de defendê-lo. Uma exceção é o líder do PSC, André Moura, de Sergipe. Réu no STF por apropriação indébita. Moura preparou um manifesto pró-Cunha assinado por alguns líderes. Estes comandam partidos com 230 deputados ao todo. Ou seja, menos da metade dos 513 deputados e menos do que os 267 votos obtidos por Cunha na eleição à presidência da Câmara. Sem querer, Moura mostrou que Cunha já não tem mais o controle da Casa.
Outro que ainda se mexe a favor de Cunha é Paulinho da Força, presidente do Solidariedade. Réu no STF por corrupção, Paulinho disse há alguns meses que Cunha “é a pessoa mais correta que eu já encontrei na vida”. Para garantir um voto a mais a favor da “pessoa mais correta” no Conselho de Ética, Paulinho substituiu um colega de sigla, Wladimir Costa, acometido de repentino problema de saúde. De quebra, denunciou Chico Alencar ao Conselho, uma desavergonhada tentativa de intimidar o algoz de Cunha. Paulinho admitiu às claras: quer segurar Cunha para derrubar Dilma Rousseff.
O desejo de defenestrar a presidenta levou o PSDB a fingir por meses não enxergar as acusações contra Cunha e a defender “o benefício da dúvida” para ele. Agora os tucanos perderam a paciência. Em nota, seus deputados dizem “considerar insuficientes as explicações” de Cunha “diante da contundência das denúncias e dos documentos já conhecidos” sobre as contas. A legenda não parece disposta a recuar nem se Cunha encampar o impeachment. Aposição do PSDB é de votar com as provas, e as provas são contundentes hoje contra o presidente da Câmara, disse o senador Aécio Neves, máximo dirigente tucano.
Única possibilidade de mudar o destino de Cunha, caso ele consiga abrir um processo de deposição de Dilma, algo que bagunçaria de vez o cenário político. É o que explica o silêncio do PT e do governo temerosos de Cunha tocar fogo no circo e na economia. Para o presidente do Conselho de Ética, José Carlos Araújo, do PSD da Bahia, o clima na opinião pública e entre os parlamentares é bem desfavorável ao peemedebista e vai piorar. Os argumentos de Cunha, diz, não importam mais: “As pessoas querem saber se votamos a favor ou contra o Eduardo Cunha”. O relatório do deputado Fausto Pinato, do PRB paulista, sobre a continuidade do processo de cassação deve ser votado em I o de dezembro. Se o processo seguir adiante, o desfecho é esperado para março ou abril. As vésperas da eleição municipal, com o eleitorado de olho. Maus presságios para Cunha.
A pressão das ruas contra o presidente da Câmara é crescente. Movimentos sociais de jovens, mulheres, sindicatos e moradia já foram protestar na porta da casa dele, já atiraram dólares durante uma entrevista do deputado e organizaram para a sexta-feira 13 um ato nacional pelo “Fora Cunha”. Um ensaio da manifestação ocorreu no domingo 8, durante a qual o líder do movimento MTST, Guilherme Boulos, deu pistas sobre o humor da turma. “Eduardo Cunha é um sem-vergonha, um bandido, só não foi preso ainda porque a Polícia Federal e o Ministério Público escolhem quem prendem.”
“O problema para a sociedade brasileira é ele continuar no cargo, apesar de todas as denúncias, dá uma sensação de impotência”, diz o filósofo Renato Janine Ribeiro, a considerar que as explicações de Cunha “não são boas, demoraram e não convenceram”. “Há um político acusado de ter alguns milhões de dólares não declarados e aí não acontece nada?”, indaga. Para o ex-ministro da Educação, Cunha paralisou o País por razões pessoais e age com incrível belicismo para quem se diz religioso.
Enquanto fica no cargo. Cunha segue a comandar votações. Em uma delas, na quarta-feira 11, os deputados aprovaram e mandaram ao Senado uma lei para regularizar a situação de cidadãos que, como Cunha, esconderam capital no exterior. O projeto passou por apertados 230 votos a 213. Quem quiser parar de esconder, terá de declarar os recursos à Receita Federal e entregar 30% do valor total, como punição. Em troca, terá anistia de certos crimes praticados na ocultação, como sonegação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Um modelo experimentado mundo afora.
Na última hora, a Câmara excluiu os políticos dos benefícios da regularização. Não era a vontade do relator da lei, Manoel Junior, do PMDB da Paraíba, um fidelíssimo de Cunha. Junior defendeu os interesses do capital perante o Estado com a paixão que seu herói teria. Merecia ser recompensado de algum modo, como Cunha certamente seria. Manoel Junior ampliou o rol de crimes anistiados (descaminho, uso de identidade falsa em operações de câmbio) e reduziu a multa de regularização (era de 35% na proposta do governo), entre outras. Filosofia idêntica à adotada por Cunha no ano passado na relatoria de uma lei sobre a tributação de multinacionais brasileiras por lucros no exterior.
O projeto foi enviado pelo governo ao Congresso em setembro por uma série de interesses. De um lado, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, corre atrás de verba para compensar o desajuste fiscal causado por seu ajuste fiscal. A Fazenda estima em400bilhões de dólares a montanha escondida lá fora. De outro, muito ocultador graúdo pressionava por uma rota de fuga, por estar prestes a ser pego. Um acordo Brasil-EUA vigente desde setembro, o Fatca, diz que haverá uma troca anual e automática de informações entre os dois Fiscos. Nós informaremos a eles sobre as contas de norte-americanos no Brasil e vice-versa. O objetivo é combater a sonegação. A Receita já recebeu cerca de 25 mil informes para usar na conferência do Imposto de Renda 2016.
Essa troca automática de informações financeiras ganhará escala global a partir de 2017. E quando vai virar realidade um acordo desenhado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a pedido do G-20, o grupo das maiores economias. Após reunião do Fórum Global para a Transparência no fim de outubro em Barbados, já são 96 países ou jurisdições comprometidos com a troca automática, algo que o Fórum diz que “vai alterar permanentemente a aritmética de evasão fiscal internacional”. O Brasil topou aderir a partir de 2018, mas se o Congresso aprovar logo uma convenção da OCDE antecipará para 2017.
Outra frente de esforço global antissonegação também está prestes a sair do forno. Em reunião de líderes do G-20 nos dias 15 e 16 na Turquia, seria chancelada uma proposta rabiscada pela OCDE com medidas para coibir o planejamento tributário agressivo. Na mira, sobretudo, as multinacionais. “Antes havia uma tendência a permitir que alguns países competissem por investimentos na base de dar oportunidades a empresas de evitar pagar impostos. Esse paradigma mudou, hoje existe um esforço internacional para combater essa prática”, diz o subsecretário-geral de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, embaixador Carlos Cozendey.
Com a troca de informações financeiras e o combate ao planejamento tributário, o planeta investe como nunca contra os paraísos fiscais. Estes escondem hoje de 20 trilhões a 30 trilhões de dólares, segundo um relatório do início do mês divulgado pela Tax Justice NetWork, a conter um ranking atualizado dos maiores paraísos. A Suíça, terra do dinheiro secreto de Eduardo Cunha, puxa a fila, seguida por Hong Kong e EUA. Segundo o relatório, o cerco global contra o sigilo financeiro tende a ampliar o uso dos trustes, os mesmos alegadamente usados por Cunha em suas peripécias.
Se Cunha ainda for capaz de mudar seu destino, podería, na condição de autoridade, dar umas boas palestras pelo mundo sobre o que fazer contra trustes e paraísos fiscais. Só não vale romancear.