Deputados e senadores propõem ampliação do currículo escolar com disciplinas que vão de educação digital à Constituição. Especialistas repudiam projetos e cobram bom senso
Junia Oliveira
Em matéria de educação, todo mundo mete a colher. Afinal, do “casamento” entre ensino e ideias para melhorá-lo sai um festival de polêmicas, opiniões e, principalmente, projetos em todas as esferas. É o que mostram várias propostas inusitadas em tramitação no Congresso Nacional. Se depender de um grupo de deputados federais, o português e a matemática ganharão a companhia de outras disciplinas obrigatórias, que vão de temas típicos da vida contemporânea, como educação e segurança digital, segurança no trânsito, educação financeira, até assuntos de cunho cível, como cidadania e a Constituição. Um deles propõe mudança ainda mais radical: mandar para o crivo dos legisladores a criação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), atualmente em discussão nos estados e chegando a Minas Gerais no mês que vem. Especialistas em educação repudiam propostas e cobram bom senso.
Um exemplo é o Projeto de Lei 1.077/2015, do deputado federal Rômulo Gouveia (PSD/PB), que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a temática “educação e segurança digital”. A justificativa do deputado começa citando tempos remotos. Segundo ele, “ao longo dos séculos, desde o Império Romano até a colonização das Américas, a exploração da infância e da juventude sempre se fez presente”. E, com o advento da internet, conteúdos positivos ou negativos estão ao dispôr de bilhões de pessoas.
De acordo com o deputado, a proposição, que tramita em caráter de prioridade, visa a prevenir e inibir o avanço de modalidades criminosas. A disciplina vai tratar dos diversos aspectos relacionados à internet, especialmente a conscientização e prevenção da prática de assédio moral e sexual, cyberbullying, segurança digital, direitos e deveres, liberdade de expressão e crimes no ambiente digital. “Portanto, é preciso estabelecer um programa de conscientização educacional, abrindo os olhos dos jovens e dos adolescentes, liberando-os de vitimização destes delitos, com o objetivo de manter o equilíbrio psicológico, evitando a violação dos princípios e da inocência dos mesmos, blindando-os, assim, contra a violência de qualquer aspecto abusivo, seja moral ou sexual”, afirma Rômulo Gouveia.
No Senado, foi aprovado o PLS 70/15 do senador Romário (PSB/RJ), que propõe o ensino da Constituição Federal na educação básica. De acordo com o ex-atleta, o objetivo do projeto de lei é “expandir a noção cívica dos nossos estudantes, ensinando-lhes sobre seus direitos constitucionais, como cidadão e futuro eleitor, e, em contrapartida, aprenderem sobre seus deveres”. A proposição seguiu em outubro do ano passado para a Câmara e aguarda votação.
O deputado federal Pompeo de Mattos (PDT/RS) também quer dar sua contribuição. Em regime de prioridade, o PL 2.366/2015 quer incluir os princípios da proteção e defesa civil, educação ambiental, princípios da proteção e defesa da cidadania e noções de educação do trânsito na grade curricular. Nesse último item, seriam abordados ainda primeiros socorros e direção defensiva. Para o deputado, ficou uma lacuna depois da retirada das disciplinas de educação moral e cívica e organização social e política do Brasil (OSPB) — elas saíram da sala de aula no fim da década de 1980.
Pompeo Mattos tem certeza de que vai colaborar para o enriquecimento da grade curricular das escolas. “A ideia é de que a noção dos direitos fundamentais, sua extensão e a forma como podem ser exercidos, gerem a potencialização da participação social, como um dos fundamentos de proteção da sociedade e do estado democrático de direito”, afirma o deputado.
GLOBAL
A doutora em educação pela PUC-Rio Andrea Ramal afirma que há pelo menos 30 projetos dessa natureza em Brasília. Ela alerta que propostas como essas vão na contramão da educação de hoje, que está tentando superar a fragmentação do conhecimento e para buscar abordagens mais globais e interdisciplinares. “No Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), por exemplo, temos provas de códigos, linguagens e suas tecnologias, com questões que mesclam saberes de leitura e interpretação de signos linguísticos, sejam eles textos, músicas ou obras de arte. Isso vai muito além de uma ‘prova de gramática’, como era antes. Novas disciplinas, introduzidas sem articulação com as demais, colocam em risco essa visão global que o estudante precisa formar, além de sobrecarregar a vida escolar de aulas e mais aulas”, diz.
Ela considera que os temas devem, sim, ser tratados em sala de aula, mas não de maneira imposta. Para a educadora, os professores devem abordá-los em suas disciplinas, articulando teoria e prática. “O ensino é uma arte e uma ciência, com saberes específicos, trajetórias de formação e competências que, muitas vezes, só desenvolvemos depois de muitos anos na sala de aula”, acrescenta. Andrea defende que o ideal é enxugar o número de matérias obrigatórias ou deixar como está. Ampliar, jamais. “O estudante precisa de uma jornada escolar ampliada, com mais horas na escola, mas não para ter mais aulas, e sim para se organizar, fazer leituras e tarefas monitoradas, praticar esportes ou aprender saberes ligados à arte e à música, criar sentidos a partir do que aprende e ser protagonista do seu plano de vida futuro. Hoje, o aluno fica submergido numa escola que fala, fala, fala, mas que o ouve pouco e lhe dá pouco espaço para se assumir como sujeito criador, cidadão, proativo.”
Disputa para definir base
Na reta final para bater o martelo no documento mais importante da educação brasileira dos últimos tempos, um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, se aprovado, pode causar uma reviravolta na elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Incluído na conta das propostas inusitadas para tratar do ensino, o PL 4.486/16 propõe transferir para o crivo dos legisladores as decisões da base que está sendo construída em nível nacional para deixar claros os conhecimentos essenciais aos quais todos os brasileiros têm o direito de ter acesso e se apropriar durante sua trajetória ano a ano, desde a creche até o nível médio. Ela está em discussão por diversos setores da sociedade e em fase final de elaboração.
Foram 12 milhões de contribuições da sociedade civil, incluindo alunos, professores, familiares, especialistas em educação. Mas o deputado Rogério Marinho (PSDB/RN) acha que o Congresso é a casa mais indicada para discutir algo que afetará o país nas próximas décadas. “Pode ter 50 milhões (de contribuições), mas quem está avaliando e selecionando essa consulta?”, questiona. Para ele, o caminho mais correto, a exemplo de outros países citados pelo deputado como pioneiros nessas discussões, como Austrália e Estados Unidos, é discutir, primeiro, as transformações necessárias em matemática e na língua pátria, para, num segundo momento, estender a outras disciplinas. Ele garante que os deputados farão pressão para tomar as rédeas do processo. “A essência da nossa democracia está no Parlamento. Somos nós os representantes dos interesses do povo”, frisa.
O presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima, vê a proposta como contraditória, à medida que o próprio Congresso aprovou, há dois anos, a lei do Plano Nacional de Educação (PNE) e definiu os trâmites de elaboração da BNCC. Uma prerrogativa do Ministério da Educação (MEC) que envolveria a sociedade, estados e municípios, encaminhando o texto para aprovação e votação no Conselho Nacional de Educação (CNE). “Os deputados têm que respeitar essa caminhada. Se há um grupo interessado em fazer valer suas ideias, que se inscreva nos seminários estaduais e, se a ideia for aprovada, entra no documento. Fazer pela forma legítima e não mudar a regra do jogo na etapa final”, defende.
Seminários em Minas
A Base Nacional Nacional Comum Curricular (BNCC) começou a ser discutida nos estados no dia 23, em seminários de formação. Em Minas Gerais, os encontros estão marcados para os dias 2 e 3 do mês que vem, em Belo Horizonte. Estarão presentes professores, estudantes do ensino médio e outros profissionais vinculados à área de educação.